03/06/2011

Tangerinas.

     Uma crônica, meio conto. 
      Por Vera Romariz. Mãe da Achada Melina Romariz.
     Em cima de um ônibus, sacolejo. Caminho de João Pessoa, Paraíba.  E o lado bom, inesperado, de a cinquentona professora  voltar a ser aluna, descobrindo lugares, fazeres, horizontes. Encantada. No ônibus, o motorista dizendo em monocórdica voz que estava à disposição de todos. Pequenas ilhas de pessoas, cada uma com seus assuntos silenciados. Eu no meio. Pensando no trabalho terminado. O prazer adolescente de aprender sem sobressaltos de prazos, reuniões, enxaquecas, patrões. Analisava em pensamento um conto de Rubem Fonseca,”O cobrador”. Sem me cobrar, sorrindo feliz, abestadamente.
      Descansei o corpo e ativei a cabeça. Poderia melhorar o texto. Podia? Passado o prazer inicial com o curso, precisava mostrar serviço. Adorava iluminar uma sombra qualquer do material que se oferecia, jovem e ingênuo, a minha caneta. A fúria do personagem de Fonseca, vingando-se da sociedade, me fascinava.Lembrava um filme recente,” Um dia de fúria”, Michael Douglas como o pai enlouquecido, vingando-se das convenções, da perda da filha que amava. E saía de arma em punho, atirando em tudo e todos...De repente... um  cheiro inesperado de fruta cortou meus pensamentos eruditos e deslocados. Cheiro forte, com vontade de “Venha me chupar, boboca”. De onde vinha o cheiro insidioso, delicioso, importuno? Das tangerinas na mão de um passageiro atrás de mim. Elas se ofereciam, atrevidas, em um bordel de cores e sabores. Covardia...
   Meu nariz deu a ordem  e olhei disfarçadamente: um senhor vestido simplesmente, roupa surrada e limpa, um saco de tangerinas no colo e mãos ágeis descascando uma por uma. Era o pai; corpulento como um cantor de ópera, espécie de  maestro em cena, dando opiniões que ninguém pedia, tomando decisões, um protagonista. Dele emanava um  jeito inquieto de quem jamais pararia para ler um livro, mas coordenaria com mão de ferro a despensa da casa. Alguém que tem solução pra tudo, certo de que está certo, sempre. A filha(julguei), uma adolescente calada, recebia sem retrucar  os frutos, que o pai descascava em ritmo ágil, sem bestas reflexões.  Como quem alimenta um bebê.
         O conto “Cobrador” é árido, seco, pouco tem a ver com a maciez das tangerinas.  De repente, um susto. Interrompendo lembranças, Rubem Fonseca e seus personagens, uma mão larga atravessa meu rosto, rude e afetuosa: "Chupe, moça. Cê tá tão amarelinha..”E me entrega, descascada, mão segura e estendida, uma tangerina. Com um abestado sorriso amarelo, aceito  e enfio os dentes na maciez dos bagos oferecidos. Mordo o fruto, a saudade, largo Rubem Fonseca, o doutorado, volto ao tempo do velho pai, uma mão  permanentemente estendida em minha direção.
      No corredor vazio, feito fantasma, ainda sinto a  sua figura pausada  e afetuosa irrompendo na noite reencontrada, praticando pequenos atos delicados, quase femininos: torradas com chá, consertos em roupas para as filhas, flores e livros em datas especiais. E, quando engravidei do primeiro filho: "A Verinha  tão fraquinha...Tem pouca saúde. Será que vai aguentar o parto?” Minha mãe ria, despachada e sábia, ciente da força  vital que o pai insistia em não ver, desejoso de congelar a menina das lembranças mornas da infância. Do tempo das tangerinas que não se perguntam. Pedaços do pai e da mãe  estavam ali, no gesto de alimentar os filhotes, prazerosamente, cedendo ao cotidiano sem sobressaltos. Imagens cruzadas no ziguezague da memória.
      Fragmentos assanhados da infância invadem o ônibus. Acendem luzes que só eu vejo. E  o  pai  morto levanta da casa do Farol, viaja nas rodas do tempo, olhos verdes e mansos, iluminando as cadeiras mofadas com seu brilho discreto de sol de fim de tarde, como quem não quer sair, emprestando um ângulo especial à cena de que não fui protagonista. Entre Maceió e João Pessoa; entre eu e minha memória. Maciez e tangerinas.

Por Vera Romariz.
Maceió, 2011, a partir de roteiro de 1999.

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